Que livro incrível, uma história bem seca como diz o nome. Um livro em que o mais importante é o panorama social que os personagens estão incluídos. No livro Vidas Secas, obra mais famosa de Graciliano Ramos, conhecemos uma família de retirantes que é levada de um lugar a outro pela seca que atinge o sertão. No começo seis “viventes” como o autor diz estão procurando um novo lugar para viver, 4 pessoas, um papagaio, que vai virar almoço, e uma cadela chamada Baleia. Eu tive a oportunidade de ler esse livro de duas formas: Graphic Novel (que li primeiro) e o livro clássico mesmo.
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O pai se chama Fabiano e sua esposa Sinhá Vitória, e os dois filhos o menor e o maior, que não tem nome, retrato da desumanização desses personagens na história. Depois de muito andar eles acham uma casa, mas quando as coisas melhoram um pouco os donos da fazenda voltam e Fabiano passa a trabalhar para eles. E logo se vê um retrato de exploração por parte o patão, que atribui dívidas a Fabiano que com isso recebe muito pouco. Graciliano faz assim uma denúncia da exploração do trabalhador rural, que muitas vezes por não ter a própria terra sofre esse abuso. O governo, representado pela polícia, é outro fator de coerção, em uma situação em que Fabiano é agredido por muito pouco. Fabiano constata a situação em que vive em vários momentos mas acaba se conformando. Até em momentos em que a família vai a cidade e tenta se arrumar de acordo, acabam se sentindo tão deslocados que não conseguem aproveitar o passeio.
O que mais gostei no livro foi a forma com que Fabiano tem algumas ideias rebeldes mas depois acaba voltando para os pensamentos submissos. Por mais que o livro não seja em primeira pessoa, o narrador consegue contar esses jorros de pensamentos do personagem, que vai analisando cada situação: pensa que merece uma vida melhor, acredita que poderia virar “homem” de verdade, reflete que se soubesse falar , ler e se expressar teria como se defender, mas logo depois muda de ideia e volta a se ressentir com tudo mas se conformando novamente. Essas partes são tão bem escritas que fico me perguntando porque não li esse livro antes. Em uma das situações O soldado amarelo o prende e ele fica lá matutando o absurdo de estar ali, como ele pode se rebelar, como ele mataria o soldado, para depois reconhecer sua insignificância e o que poderia acontecer a sua esposa e filhos se ele fizesse algo. Tanto que quando encontra o tal soldado sozinho e perdido, e primeiro planeja se vingar, mata-lo, mesmo tendo a chance de escapar, volta atrás e não se vinga. “Governo é Governo”.
Cada capítulo traz uma nova situação de injustiça e de seca. O narrador trata de forma muito dura cada história deles e em nenhum momento demonstra qualquer sentimento pelos personagens, a única que desperta alguma piedade do narrador é a cachorra baleia, que no livro é quase gente (como diz Fabiano), mas que acaba sendo sacrificada durante a história, em uma parte bem triste do livro. Todas essas situações secas, a fome e a pobreza, refletem em Fabiano que é muito duro com a esposa e os filhos. Vitória gostaria de comprar uma cama e até tenta se arrumar e manter uma vida digna, mas Fabiano sempre corta seus sonhos ou gasta o pouco que eles tem com bebida e cachaça. Em alguns momentos ele vai até se questionar sobre o direito da família a algum carinho e atenção, mas ressalta logo que é o tipo de vida que não pertence a eles.
Outra parte genial, é quando a esposa diz a Fabiano que a culpa da seca são dos pássaros, que começam a debandar e bebem a água dos animais. O presságio dos pássaros indo embora se reverte na própria causa da seca na cabeça dos personagens que precisam culpar alguém por todo esse mal.
O livro, apesar de ter sido publicado em 1938, é muito atual, já que várias dessas situações ainda podem acontecer. Continuamos vivendo num país onde não há terra para todos e muito menos água. Meu avô é uma pessoa que abandonou o Nordeste por condições melhores de vida e quantos ainda não o fazem?
Na edição que li em ebook (45a, não sei como é a capa), o pós fáscio é escrito por Álvaro Lins, e ele fala um pouco não só do Vidas Secas mas também de outros livros do autor, fazendo comparações e é bem interessante. O nome do texto é Valores e Misérias das Vidas Secas, e ele escreveu esse texto enquanto Graciliano ainda estava vivo. E ele já começa o texto falando que a obra do Graciliano explica quem é o autor, e que ele não analisaria um autor contemporâneo, que só é possível analisar profundamente autores que já morreram. Mas ele acaba analisando um pouco sim, quando explica que esse cenário duro apresentado vem do tipo de infância que Graciliano teve, com pais e mães rígidos e dispostos a castigar (isso tudo estaria no livro Infância escrito por Graciliano).
Três coisas me chamaram a atenção na análise de Lins, eu até já tinha percebido, mas ao ler a análise ficou mais claro. Como o autor não descreve o ambiente como outros autores fariam, mas explica o ambiente somente em função do personagem. O fato dos personagens estarem voltados muito para dentro, o que já falei um pouco sobre os pensamentos de Fabiano, ele vai chamar até de “alucinação. E também como a história não é temporal, não sabemos exatamente a que horas as coisas estão acontecendo e nem quantos dias levaram, o tempo é abstrato. Apesar de em Vidas as situações começarem a ser contadas no passado, e darem a ideia de que já foram vividas, conforme você lê aquilo parece que está acontecendo agora. E uma quarta coisa é a linguagem que é simples e direta, mas que consegue expressar todos esses sentimentos que falei, mas com poucas metáforas, revelando uma habilidade única.
Graphic Novel
Eu a vi na bienal e fiquei encantada com a versão em quadrinhos dessa obra, ainda não tinha lido o livro, li o quadrinho primeiro, e fiquei com vontade de ler o livro para saber o que mais Graciliano teria para contar daquilo ali. O quadrinho traz as principais partes do livro, os “causos” mais importantes estão ali belamente representados, mas mantendo o jeito seco da história, tanto que nem temos cor. O roteiro é bem fiel ao livro, mas que fui entender melhor algumas partes depois que li o texto original, mas eu recomendo, principalmente aos jovens que estão com algum preconceito com o clássico. O prefácio do livro também é bem legal, a autora do texto Elisabeth Ramos, explica e levanta algumas questões sobre as adaptações destacando que o livro não foi criado para substituir o outro e sim para agregar outra forma de ler a mesma história.Que por si só já seria lida de várias formas, porque cada um de nós tem uma experiência e interpretação diferentes de um mesmo texto.
Aqui, o silêncio dos personagens não se reflete apenas na ausência de palavras, mas também na ausência de rostos completos, em vários quadros definidos por cores que nos remetem à aridez da terra devastada pea seca, sem vegetação. Pelo vermelho quase ocre do sol e do sangue. Por traços escuros e fortes, nos trechos em que a injustiça e a iniquidade se destacam na narrativa.
Edição de 70 anos
Outra experiência muito rica de leitura dessa obra, deve ser a da edição de 70 anos do livro que contou com um trabalho fotográfico do Evandro Teixeira, especialmente para esse livro. As poucas fotos que vi são incríveis e com certeza já é uma outra experiência.
O filme
O filme baseado no livro foi feito em 1963, com direção de Nelson Pereira dos Santos e distribuído pela Herbert Richers. O longa é bem fiel ao livro, até na ordem, uma situação ou outra que foram fundidas. Mas o filme não me prendeu como o livro. Para quem quiser assistir ele está completo no youtube:
O autor
Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogênito dos dezesseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime das secas e das suras que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico “Infância”, assim se referia a seus pais: “Um homem sério, de testa larga (…), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (…), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”. (fonte: Releituras). Casou-se duas vezes e teve 7 filhos. Escreveu mais de vinte livros que são material de estudo e grandes exemplos do modernismo e da literatura nacional. O autor morreu em 1963, no Rio de Janeiro.
Para quem quiser saber mais sobre a obra e o autor, recomendo o site, “completão”: www.graciliano.com.br. Obra completa. Biografia. Autorretrato é um texto muito interessante, em que o autor revela várias coisas sobre ele!
Eu ainda não li nenhuma biografia do autor, mas quando estava na faculdade entrevistei o professor Dênis de Moraes (que infelizmente não foi meu professor), para um projeto de jornal online da UFF chamado Cenário, e fiquei com muita vontade de ler o livro O Velho Graça, escrito por ele sobre o autor. O livro foi publicado pela primeira vez no centenário de Graciliano, mas ganhou uma nova edição, com mais conteúdo, em 2013. Quem quiser conferir a entrevista, só não repare na qualidade do vídeo:
A música Súplica Cearense de Luiz Gonzaga, foi regrava pelo grupo O Rappa, e lembrei dela em vários momentos da leitura.